Imagem de Alice Neto de Sousa com o título da sua newsletter: "A Palavra em Gesto"

A Palavra em Gesto

Algures numa paragem de autocarro, à espera, vi duas pessoas a falar. Olhei para os gestos no ar, todas as expressões, e fiquei a pensar o que poderiam estar a dizer. As mãos mexiam, respondiam, e fora a pessoa no canto inferior direito no quadrado, que vemos nas notícias, estava ali ao vivo, em primeira mão, a olhar, a decifrar os gestos, o que seria o equivalente a estar a alguém a conversar e outra de ouvido posto, exceto que estava de olhos postos circundantes entre uma e outra pessoa, até que deram por mim, sorrimos – linguagem universal – o autocarro chegou e seguimos caminho.

Mais tarde, quando na faculdade surgiu a oportunidade de falar sobre corpo e comunicação, lembrei-me desse momento e escrevi um poema sobre “ouvir” o mundo em modo silencioso. Para nós, digo ouvintes, pode ser estranho imaginar um mundo onde os gestos é que andam no ar tal como os sons e o poema falava sobre isso, sobre um universo paralelo em que ser ouvinte é que era o outlier – que para quem demorou a passar a Estatística, mas quer mostrar que ficou com algumas bases – significa algo que se diferencia do padrão.

Fui procurar perceber mais sobre a comunidade Surda, estive durante cinco anos a aprender Língua Gestual Portuguesa (LGP) – ainda me lembro do primeiro nível e da ginástica para fazer os números 3 e 8 ou de como passei a dar mais ênfase às expressões faciais e às inflexões no gesticular, em que um acento bem pode ser um sobrolho levantado – isto na forma mais leiga de explicar. Ganhei um nome gestual – sou um brinco de penas – sei agora o suficiente para caso me cruze com alguma pessoa Surda em paragens de autocarro ou em paragens da vida, possa comunicar para lá do sorriso e aceno de mãos e já amavelmente corrijo quando alguém, por lapso, tropeça em conceitos como linguagem gestual ou fala em surdos-mudos.

No meu percurso académico, tive também uma grande componente de reflexão pelas questões da acessibilidade e já tinha pensado o que poderia fazer para a inclusão social “para lá das tampas”, por isso, a nível artístico, quando começo a subir aos palcos, já tinha secretamente esta vontade de torná-los acessíveis. Aconteceu primeiro em 2022 na Festa do Livro da Amadora e depois no Festival Iminente, em que para além de dizer poesia, a performance “Poeticamente Poeta” contou com tradução e interpretação simultânea dos poemas em LGP. Naturalmente, bem sabemos dos desafios que existem na tradução no geral, os mesmos se aplicam à tradução de um poema para LGP, tornando por isso a poesia feita pelas pessoas Surdas como primeira língua e até as batalhas de Poetry Slam com o gesto e corpo, um campo fértil da poesia o qual tenho vindo a apreciar na plateia.

Tudo isso mostra as possibilidades da palavra, escrita, dita, e na palavra em gesto, que no fundo acaba por ser mais do que gesto, é expressão, comunicação e um caminho que artisticamente procurarei semear e criar pontes para quiçá fazer a Arte chegar mais longe e a mais públicos.

Alice Neto de Sousa


Alice Neto de Sousa (1993) é, entre outros ofícios, uma poeta e artista da palavra falada, nascida em Portugal com raízes em Angola, licenciada e mestre em Reabilitação Psicomotora pela Faculdade de Motricidade Humana.


Clipping

Destaques sobre deficiência, comunidade Surda e inclusão nos media.

Jornal Público: Maria ensina na escola onde aprendeu que ser surda não a impede de nada

Artigo completo

A mais jovem professora da Escola João Araújo Correia, na Régua, quer “fazer a diferença” com crianças. Na Eugénio de Andrade, no Porto, surdos e ouvintes aprendem juntos desde o pré-escolar.

Descodificador

Porque não devemos utilizar a expressão surdo-mudo?

A expressão “surdo-mudo” é uma denominação incorrecta atribuída à pessoa surda.
Uma pessoa surda não é necessariamente muda e não existe ligação entre a mudez e a surdez. Na realidade, os surdos que também são mudos constituem uma minoria entre a população surda. É possível uma pessoa surda falar. As pessoas surdas que falam, são identificadas como “surdos oralizados”. Também é possível uma pessoa surda nunca ter falado, não por ser muda, mas apenas por ausência de terapia específica. Por esta razão, a pessoa surda só será também muda se for constatada clinicamente deficiência na sua oralização, impedindo-a de emitir sons.


Agenda

Eventos com acessibilidade física, legendagem, Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição. 


Teatro Municipal São Luiz | Tudo Sobre a Minha Mãe  
11 a 22 de Janeiro, Lisboa

Destaque: Tudo Sobre a Minha Mãe, texto de Samuel Adamson a partir do filme de Pedro Almodóvar, centra- se na vida de Manuela – uma enfermeira, mãe solteira, que assiste à morte do filho no dia em que completaria 17 anos. Manuela parte numa viagem à procura do pai do filho e, nesse recuperar do passado, encontra uma antiga amiga com quem ele se prostituiu, conhece uma freira e começa a trabalhar como assistente de uma conhecida atriz de teatro. Tudo sobre a minha mãe é um espectáculo sobre a incondicionalidade da força feminina – sobre o que é ser mulher (periférica ou não, racializada ou não, cis ou transgénero).

+ info: Teatro São Luiz

Acessibilidade: Língua Gestual Portuguesa (22 de janeiro) Audiodescrição (20 e 22 de Janeiro).


Teatro do Bairro Alto | S/ Título #8   
27 a 29 de Janeiro, Lisboa

Destaque: A proposta dos auéééu e Fernando Roussado centra-se potencialidade que poderá haver no encontro entre a materialidade da escultura e os corpos do teatro. Este espectáculo aposta no encontro e na interferência entre o espaço da escultura e o corpo do teatro. O público que entrar na sala sabe tanto quanto quem está em palco. Ou quase. Aqui desafiam-se os princípios da racionalidade, da certeza, da conquista; contraria-se o controle, a hierarquia e a hegemonia; o jogo é virar as costas ao que acabou de ser criado e continuar a busca, reclamando a liberdade do risco e do abismo.

+ info: Teatro do Bairro Alto

Acessibilidade: Audiodescrição (28 de Janeiro).


Mais sugestões em www.cultura-acessivel.pt

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