O acesso à palavra é uma questão de direitos humanos

04/01/2023
Imagem com citação de Irina Francisco: "O acesso à palavra é uma questão de direitos humanos"

O braille representa, para uma pessoa cega ou com baixa visão severa, o contacto direto com a palavra escrita e também a possibilidade de comunicar de forma autónoma. O acesso à literatura, enquanto arte que vive da palavra, faz-se, por isso, através desses pontos em relevo que tornam possível ler um livro, folheá-lo, cheirá-lo, transportá-lo para um banco de jardim, para a mesa do café ou qualquer outro espaço de leitura. Ler um livro em braille reveste-se do mesmo encanto, para um utilizador deste sistema de leitura e escrita, semelhante ao de ler um livro a tinta, para todos os amantes da leitura sem qualquer dificuldade de visão que gostem do «cheiro» e do toque de um livro. Não é substituível por softwares de voz ou por uma leitura em voz alta feita por outra pessoa. Ler é um ato individual e intransmissível: carrega consigo um mundo de interpretações e de subjetividade que se constrói entre o leitor e o livro.

Poder ler um livro em braille é, no entanto, raro nos dias que correm. Aceder a livros adequados à sua idade e aos seus interesses, em braille, é, para uma criança cega, quase impossível. Felizmente, a tecnologia já permite a leitura em braille recorrendo aos equipamentos informáticos que o reproduzem de forma instantânea – através das linhas braille ligadas a computadores e a máquinas de tecnologia de ponta.

Sempre que penso nos livros e nos escritores que mais marcaram a minha vida, não consigo deixar de recordar aqueles catorze volumes d’Os Maias que chegaram até mim enquanto estudante do ensino secundário e que foram, anos mais tarde, companheiros de trabalho nas aulas de Português que lecionei aos alunos a quem ensinei a desfrutar do Eça. É-me difícil a relação com o Pessoa sem colocar os dedos sobre as palavras, escritas em relevo, que transportam o sentido dos seus versos. Como ler e ensinar poesia sem a possibilidade de tocar e voltar a tocar nos pontos que compõem as palavras, sem relê-las várias vezes?! E como entrar no mundo de Saramago, com múltiplas vozes no mesmo parágrafo, usando exclusivamente a voz de um qualquer equipamento informático ou mesmo a de um leitor que se disponha a lê-lo para nós em voz alta? Todos esses caminhos são válidos, naturalmente. Mas o verdadeiro contacto com a palavra faz-se através da leitura sem intermediários. É um ato de intimidade mas também de autonomia. De autodeterminação! A linha braille, justiça lhe seja feita, possibilita esse contacto imediato com o braille e talvez seja, nesta era tecnológica, o caminho mais viável e universal. Mas isso não é um livro. Tal como os tablets e os computadores não substituem um livro em papel. São complementos, alternativos, não substitutos.

E tanto que se defende que a leitura deve ser estimulada desde a infância. Tanto que se investe na indústria do livro infantil: tantas cores, tantas belas ilustrações, tantas estórias cativantes. Como será para uma criança cega? Que cores, que ilustrações, que estórias contadas através das letrinhas em tinta poderão elas conhecer se o livro infantil em braille é uma realidade quase inexistente em Portugal?

Num tempo em que os livros se tornaram objetos de culto, em que escolhemos criteriosamente qual deles o mais adequado para oferecermos àquela pessoa especial, tentando adequar o conteúdo ao seu gosto e aos seus interesses, continua a ser missão quase inalcançável oferecer um livro em braille, a adultos ou a crianças. E porquê? Porque se trata de um público minoritário, que não adquire quantidades de livros que justifiquem esse investimento por parte do mercado editorial? Não será a Arte Literária, ou a mera leitura por lazer, um direito de todos? Não deverão as crianças cegas poder ler um livro em braille desde cedo e participar nas horas do conto, nas atividades de promoção da leitura da biblioteca escolar, da aula de Português, do clube de leitura lá da escola? Ler um livrinho à noite, antes de dormir?

O acesso à palavra, à informação, ao conhecimento, à arte, é uma questão de direitos humanos!

Irina Francisco

Professora de Português e de Espanhol dos ensinos básico e secundário desde 2011, Irina Francisco exerce também funções como professora requisitada na Direção de Serviços de Educação Especial e de Apoios Socioeducativos da Direção-Geral de Educação desde setembro de 2019, onde trabalha como revisora de manuais escolares e provas de avaliação externa em braille. Concluiu o curso de especialização/pós-graduação em Ciências da Documentação e Informação (Biblioteconomia) em 2010. Detém o grau de mestre em Línguas, Literaturas e Culturas – variante em Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos (2016) e atualmente frequenta o programa de doutoramento em Educação na área de especialidade em Administração e Política Educacional do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Foi membro do Núcleo para o Braille e Meios Complementares de Leitura (NBMCL) em representação da Associação dos Cegos e Ambliopes de Portugal (ACAPO) entre 2017 e 2021 e integra a direção da Associação Bengala Mágica desde 2019.


Amplificador

I’m not your inspiration, thank you very much | Stella Young

Stella Young é uma comediante e jornalista que por acaso passa o seu dia numa cadeira de rodas – um facto que ela gostaria de deixar claro – não a transforma automaticamente numa nobre inspiração para toda a humanidade. Nesta Ted Talk, Young quebra o hábito da sociedade de transformar pessoas deficientes em “pornografia de inspiração”.

Agenda

Eventos com acessibilidade física, legendagem, Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição. 


Circo Coliseu Porto Ageas 2022
Dezembro 2022 a 8 de Janeiro 2023, Porto  

Destaque: Com sessões descontraídas, o Circo de Natal do Coliseu Porto Ageas volta a reinventar-se com os melhores artistas e música tocada ao vivo, e mostra o que as artes circenses têm de mais fantástico. Há sessões com audiodescrição (dias 29 de Dezembro, 7 e 8 de Janeiro) e com Língua Gestual Portuguesa (4 e 7 de Janeiro). 

+ info:Coliseu Porto

Acessibilidade: Sessões com audiodescrição e Língua Gestual Portuguesa. 

Mais sugestões em www.cultura-acessivel.pt

Scroll to Top
Skip to content
accesslab favicon
Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.