Música entre meltdowns – eventos e o autismo

"Música entre meltdowns - eventos e o autismo"

São 3 da manhã, numa noite quente de verão, há cerca de 13 anos. A música do festival perfura-me os ouvidos, quase como aquela dor aguda que vem de uma otite. Tento prestar atenção ao que me estão a dizer, enquanto tenho de sorrir e olhar nos olhos, e qual a forma apropriada de responder. Mas, entretanto, estava a tentar compreender a expressão facial da pessoa e não ouvi o que disse. O cheiro a cerveja quente, as luzes brilhantes, muitas pessoas e movimento, toques de quem passa e…. começo a chorar. Não sei bem porquê, mas tenho de sair porque já não consigo pensar, falar ou saber o que fazer. Vou para casa, em forma automática. Eu tento falar, e cada vez que tento, choro ainda mais. Depois disto, lá fico de molho na cama, debaixo de cobertores a tentar recuperar.

Raro foi o evento de música, festivais ou eventos de cultura em geral, em que eu não tive um meltdown. Muitos dos quais aconteceram enquanto eu não sabia que era autista, e não sabia o que se estava a passar.

Assim como a ausência sistémica de diagnóstico de autismo em Portugal, a acessibilidade para neurodivergentes ainda é uma miragem no país. Em vez de se adaptar o ambiente, interpreta-se o autismo como algo ‘comportamental’, por ser visto de fora, e espera-se que as pessoas autistas se adaptem e se desenrasquem, ou que não vão aos eventos.

O ser autista é uma forma diferente de como processamos informação que nos rodeia. Podemos ser mais ou menos sensíveis a determinados estímulos (por exemplo som, toque, cheiro), mas processamos bastante mais informação que nos rodeia do que pessoas não autistas. A sobreestimulação e sobrecarga em autistas não é algo que se consiga controlar. Podemos em adulto conseguir adiar um pouco, mas é mais como uma crise epilética (e pode, de facto, causar crises epiléticas).

Tornar eventos acessíveis para pessoas autistas é possível. Desde ter uma sala silenciosa (‘quiet room’) para pessoas poderem descansar, ter zonas externas ou jardim para pausas, providenciar tampões para os ouvidos, ter pessoas compreensivas que aceitem comunicar por uma aplicação de Comunicação alternativa e aumentativa ou por escrito, ter formas online e simples de comprar bilhetes ou fazer pedidos, envio de fotos e mapas do local do evento para se familiarizarem por email com agenda e detalhes, etc.

Desde o Dia do Orgulho Autista da Associação Portuguesa Voz do Autista, à conferência Autscape no Reino Unido, os eventos realizados por autistas, têm desenvolvido métodos de acessibilidade e apoio que anteriormente não existiam. Adaptações para incluir autistas vão ser positivas para todos, inclusive pessoas com questões de saúde mental, em burnout ou outras neurodivergências.

Gostava de um dia ir a um evento cultural e não ter de sair mais cedo por não haver adaptações para que eu possa ver algo que goste sem colocar a minha saúde em risco. Infelizmente, ainda não aconteceu.

Sara Rocha

Sara Rocha é uma ativista neurodivergente com surdez parcial. É Presidente da Associação Portuguesa Voz do Autista, Vice-Presidente do European Council of Autistic People, e Vice-Chair do Comité da Mulher do European Disability Forum. Trabalha em gestão de dados para investigação em saúde pública no Departamento de Saúde Pública e Cuidados Primários da Escola de Medicina Clínica da Universidade de Cambridge. Participou no desenvolvimento de politicas sociais europeias e em diversos projetos nacionais, europeus e internacionais de inclusão.

 

Amplificador

A Academia Access Lab já formou mais de 500 pessoas para que, cada vez mais, a inclusão se torne uma realidade. Capacitamos empresas e entidades em academias com representatividade e personalizadas às necessidades. Juntem-se a nós nesta jornada. Para mais informações contacte anamarta@accesslab.pt.

Clipping

Colocar a representação ao serviço da representatividade 

Ler artigo de opinião: Expresso


Onde está a possibilidade de uma pessoa com deficiência representar ao lado de uma pessoa sem deficiência? De uma pessoa negra colaborar com uma pessoa branca?

Um texto de opinião de Tiago Fortuna que questiona a representação e a representatividade. Qual o papel destes temas para a transformação da sociedade? 

Agenda

Eventos com acessibilidade física, legendagem, Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição. 

 

Loulé | Festival Política

19 a 21 de outubro, Loulé

Destaque: O Festival Política ruma a Sul com a Pós-democracia como tema central. São três dias de cinema, performances, música, humor, exposições, visitas guiadas e debates centrados na defesa do sistema democrático e na promoção da cidadania, intervenção cívica e direitos humanos.

+ info: Festival Política

Acessibilidade: Os conteúdos orais do Festival Política (debates, visitas guiadas ou oficinas) têm interpretação para língua gestual portuguesa. Todos os filmes são legendados em português, incluindo os de língua portuguesa.

LuCa  | Peço a Palavra

19 a 28 de outubro, Lisboa

Destaque: Em Peço a Palavra, encena-se um parlamento, uma assembleia universal, onde se debate a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Num futuro não muito distante, em 2030, os adolescentes de todo o mundo saem às ruas, reivindicando uma real aplicação desta Declaração: o único documento comum a todas as nações.  

+ info: Teatro LuCa


Acessibilidade: Sessão com Língua Gestual Portuguesa: 27 e 28 de outubro. Sessão descontraída: 29 de outubro.

Mais sugestões em www.cultura-acessivel.pt

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