Acessibilidade: ausência de legislação ou deficiência de fiscalização?

Imagem de Carla Matias com o título: Acessibilidade: ausência de legistação ou deficiência de fiscalização?

Recentemente, e na qualidade de advogada (mas não no exercício da profissão) e pessoa com deficiência, fui questionada sobre temas ligados aos direitos das pessoas com deficiência. Percebi então que nunca tinha parado para analisar a legislação sobre as temáticas ligadas à pessoa com deficiência e fiquei incomodada.

Tentei perceber por que razão me sentira tão incomodada, uma vez que também me diz directamente respeito.

A verdade, como já afirmei em alguns fóruns, é que tenho sido privilegiada, pela família que tenho, pelos amigos que me rodearam e rodeiam, e, no caso, pela formação académica que me facilita a resolução de situações pontuais, quase de forma intuitiva.

Quando a Access Lab me convidou para escrever este artigo de partilha, se possível sob a luz do Direito, aceitei o convite. Mas confesso que fiquei preocupada e pensei: “como vou escrever sobre um tema ligado ao Direito sem que os leitores parem no primeiro parágrafo em que comece a analisar legislação?”.

Na busca da forma e de um tema em concreto, lembrei-me que muitas pessoas acreditam que a existência de leis, decretos-de-Lei, portarias e afins que tudo regulem é a resposta e solução para todos os problemas. Porém, quem trabalha nesta área sabe bem que não é pela quantidade de leis que se mudam mentalidades e que sem essa mudança, a Lei perde a sua força e o condão de tudo resolver.

Carregada de um certo sentimento de culpa, resolvi olhar para a legislação “com olhos de ver” e decidi escolher o tema da acessibilidade, uma vez que é com ela e através dela que pessoas com mobilidade condicionada, tal como eu, podem almejar uma vida mais livre, mais inclusiva e autónoma.

Analisada a legislação relativa à acessibilidade e a outras temáticas relativas à pessoa com deficiência, confirmei aquilo que a minha intuição antevia: em Portugal não é a ausência de legislação o problema para que se possa exigir maior acessibilidade. A legislação existe, é clara e vai ao encontro (mais ou menos) da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada por Portugal, o que significa que ela própria tem força de lei em Portugal.

Perguntar-me-ão então: porque assistimos a tanta falta de acessibilidade? Como antes referi, a Lei por si só não muda mentalidades. A cultura não está devidamente interiorizada e é ela que pode fazer a diferença.

Existisse uma educação para a inclusão e não assistiríamos a pequenas aberrações, como rampas com uma inclinação impossível de usar, WC cujas portas abrem para o interior – inviabilizando a entrada de uma cadeira de rodas e fecho da porta que permite privacidade -, elevadores cujo acesso é precedido de degraus, cafés, restaurantes e até escolas e universidades cujo WC para pessoas com deficiência (quando existe) é usado para armazenamento de material, hotéis cujos quartos adaptados são virados para paredes, geradores e afins (estes sim podiam ser usados para armazém, etc.).

A ausência de uma cultura cívica e de inclusão é caminho fértil para que (i) sejam aprovados projectos para edificação que não cumprem a lei; (ii) se coloque na construção algo parecido com uma rampa, um WC, “qualquer coisa” – mesmo que inútil – mas que permite fingir que se cumpre a lei; (iii) existam espaços públicos, como por exemplo Tribunais, onde há infraestruturas para que sejam instalados elevadores, mas que ou não os possuem por falta de verba ou não funcionam, ou ainda que apenas estão pensadas na óptica de quem lá se desloca por motivos concretos, mas não para quem lá exerce a sua profissão; (iv) existam WC em estações de serviço que não podem ser trancados para permitir reserva de intimidade assegurada aos demais cidadãos; (iv) em salas de cinema ou de espectáculos,  pessoas com mobilidade condicionada tenham de se acomodar todas juntas, mesmo se estiverem acompanhadas por amigos ou familiares, etc.

A lei, como referi, existe. Já a fiscalização, tenho sérias dúvidas quanto à sua existência ou competência. As penalizações pelo incumprimento da lei – normalmente o que preocupa mais os proprietários, concessionários e afins – não serão aplicadas tantas vezes quanto as que seriam devidas, pelo que é mais fácil falar em falta de verbas ou ausência de legislação.

Tendo em conta tudo o que até aqui escrevi, designadamente os exemplos citados, todos correspondem a situações vivenciadas por mim.

Voltando à questão da educação – uma educação inclusiva, desde tenra idade – permito-me lançar o desafio deste tema ser também abordado e até lecionado nas faculdades de arquitectura, engenharia civil e nos cursos de preparação de funcionários públicos. O contacto com os utilizadores e com quem trabalha na área de inclusão – por exemplo visitas ao Centro de Medicina e Reabilitação de Alcoitão, palestras ministradas pelos professores que preparam aqueles profissionais de saúde – fariam muito mais pela inclusão do que qualquer lei.

Por fim, uma nota. Este texto, ainda que possa parecer uma utopia, não é. É, ou pretende modestamente servir para abanar ou despertar consciências.

A todos quantos se confrontam com problemas de acessibilidade deixo o meu humilde conselho: nunca aceitem menos do que merecem! Apresentem queixa, exijam o livro de reclamações, mesmo que seja necessário chamar a polícia, procurem informação, advogados, se necessário. Evitem sempre, por mais difícil que seja (e às vezes é), a agressividade e a revolta. Porque ao exteriorizá-la vão permitir que vos/nos qualifiquem como revoltados e exigentes.

Deixo como sugestão a consulta do Guia Prático dos Direitos das Pessoas com Deficiência em Portugal, que poderá dar alguma orientação.

(Texto escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico)

Carla Matias

Carla Matias, advogada, sócia da SRS Legal, e interessada em questões de inclusão, de todos os seres humanos, seja qual a sua “diferença” aos olhos da sociedade.

 

Amplificador

Mais de 70 modelos com deficiência desfilaram na Semana da Moda de Nova Iorque com roupas adaptadas às suas necessidades. O desfile de moda foi organizado pela Runway of Dreams Foundation, uma instituição pública de beneficência que trabalha com retalhistas para adaptar o vestuário às necessidades de todos os consumidores e dar às pessoas com deficiência acesso à moda.


Clipping

Let’s talk about etiquette: students with disabilities 

Ler artigo

É difícil saber qual a melhor forma de tratar toda a gente quando a interação com pessoas com deficiência pode não ser familiar para muitas pessoas – especialmente porque, para muitos estudantes, a mudança para a universidade pode ser a primeira vez que interagem com pessoas com deficiência ou que lidam com uma pessoa que tem um tipo de deficiência que nunca viram ou ouviram falar antes.

Em altura de regresso às aulas, um artigo que olha para a etiqueta na receção aos alunos com deficiência.

Agenda

Eventos com acessibilidade física, legendagem, Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição. 

 

Teatro São Luiz | A tempestade

Até 24 de setembro, Lisboa

Destaque: Pela primeira vez em Portugal, encena-se A Tempestade com a obra do compositor Jean Sibelius, produzida para o texto de Shakespeare, num projeto de encontros. Desde logo, dois génios, Sibelius e Shakespeare – teatro e música sinfónica. Um espetáculo de teor epopeico e onírico declarado. No momento que a humanidade atravessa, com uma sangrenta guerra a acontecer em plena Europa, parece fundamental pôr em cena como tema central o que se pode ler na mensagem de Próspero: só o perdão e a redenção podem veicular um futuro e uma ideia de continuidade.  

+ info: Teatro São Luiz


Acessibilidade: audiodescrição 22 e 24 setembro, sexta, 20h, domingo, 17h30. Língua Gestual Portuguesa, domingo, 17h30.


Festival Política | Coimbra

28 a 30 de setembro, Coimbra

Destaque: O Festival Política regressa, de 28 a 30 de setembro, ao Convento São Francisco, tendo a Pós-democracia como tema central. De entrada grátis, são três dias de cinema, performances, música, humor, exposições, visitas guiadas e debates centrados na defesa do sistema democrático e na promoção da cidadania, intervenção cívica e direitos humanos.  

+ info: Acessibilidade Festival Política

 

Acessibilidade: Os conteúdos orais do Festival Política (debates, visitas guiadas ou oficinas) têm interpretação para língua gestual portuguesa. Todos os filmes são legendados em português, incluindo os de língua portuguesa.

Mais sugestões em www.cultura-acessivel.pt

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