Margarida Valente

Confissões de uma leitora cega, mas muito persistente

Leio. Leio muito. Talvez mais do que seria socialmente aceitável se o tempo de leitura fosse fiscalizado pela ASAE. E leio apesar de tudo — apesar da falta de acessibilidade, da ausência de vontade política, e de um certo romantismo míope que acha que as pessoas cegas vivem apenas do toque etéreo do Braille e da memória muscular.

Sim, sou cega. E sim, leio livros. E não, não os leio todos em Braille. Vamos já despachar esse assunto: na minha humilde opinião (friso que não falo por toda a comunidade das pessoas cegas) o Braille é importante, sim senhor. Tem o seu lugar. Foi com ele que fui alfabetizada. Foi meu companheiro de infância, deu-me “Os Cinco”, os miúdos de “Uma Aventura”, até o “Harry Potter — O Cálice de Fogo” ocupava mais espaço do que a minha cama (eram 16 volumes — dezasseis!). Fui uma criança feliz entre aquelas lombadas intermináveis. Mas a verdade é que não tenho uma réplica da biblioteca de Hogwarts onde possa arquivar uma produção Braillística em larga escala. C’est la vie.

Hoje, sou uma leitora de outros formatos. E que formatos? Ora, há audiolivros, ebooks com voz sintetizada, PDF lidos a ferros com leitores de ecrã, e, quando a situação exige — porque exige — recorro à “magia negra” das fontes pouco ortodoxas, algumas cujos nomes não devem ser pronunciados. Existem grupos de pessoas cegas com espírito de guerrilha, onde a partilha de livros circula como vinho contrabandeado em tempos de seca intelectual. Há uma certa justiça poética nisso. Já que o sistema não distribui, nós distribuímos entre pares. É o Robin Hood da literatura: tiramos à inacessibilidade para dar à leitura. E agora, existe o Tratado de Marraquexe, (2013), que permite a reprodução e distribuição de obras em formatos acessíveis, para pessoas cegas, com deficiência visual ou outras dificuldades de leitura de texto impresso, sem necessidade de autorização dos detentores dos direitos de autor.

E por falar em livros: compro livros em tinta. Sim, sim, tinta. Gosto do cheiro. De saber que os tenho. Gosto de pedir autógrafos — os autores não conseguem assinar o meu telemóvel, ainda que se esforcem. Além disso, há bibliotecas municipais com serviços de digitalização e correcção (shout-out aos técnicos e voluntários que corrigem OCR como se fosse caligrafia medieval). Por isso, não é assim tão absurdo ter uma estante só minha, mesmo que me escape o conteúdo visual.

Agora, há coisas que me tiram do sério. Vivemos na era da inteligência artificial, da internet das coisas, da torradeira que canta os parabéns, e ainda há plataformas de ebooks de livrarias portuguesas que são inacessíveis. Inacessíveis como quem diz: “não te quero aqui, leitora invisível”. E depois temos os gadgets de leitura, como o Kobo ou o Kindle, que parecem ter feito um pacto de silêncio com a acessibilidade. A sério? Um e-reader que não lê para quem não vê?

Mas enfim. Entre tropeções tecnológicos e criatividade prática, continuo a ler. Com adaptação, com paciência, com alguma frustração e bastante desenrascanço. Se há uma habilidade que muitas pessoas cegas desenvolvem mais rápido que qualquer software, é a arte de contornar obstáculos. E se for preciso dar a volta ao sistema para ter acesso a um romance ou um ensaio filosófico, pois que se dê. Porque a leitura, para mim, não é um luxo. É o meu direito. E eu vou reclamá-lo. Sempre.

Margarida Valente

Ana Margarida Valente nasceu em 1990. É licenciada em Línguas, Literaturas e Culturas e mestre em Tradução pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Atualmente, frequenta o Doutoramento em Belas-Artes, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, com um projeto ligado à inclusão de pessoas com deficiência visual em museus e monumentos.

Megafone

A comediante Tina Friml revela, com muito humor, os “prazeres escondidos” de ser uma humorista com deficiência no seu hilariante set para a Don’t Tell Comedy.

Tina foi eleita uma das 10 comediantes a seguir em 2024 pela Variety. Atua regularmente no Comedy Cellar, já passou pelo Tonight Show com Jimmy Fallon, pelo The Drew Barrymore Show e pelo festival Just For Laughs no Canadá.
  


Clipping


Prémios Acessibilidade “Best Practices” regressam em outubro

 

A Associação Salvador vai distinguir empresas que se destacam na inclusão com os Prémios Acessibilidade “Best Practices”, no âmbito do Mês das Acessibilidades.

A edição deste ano apresenta quatro categorias: Vision Accessibility Award, Cognitive Accessibility Award, Physical Accessibility Award e Deaf Accessibility Award, reconhecendo organizações que se evidenciem no trabalho desenvolvido para pessoas com deficiência visual, auditiva, intelectual e física.

As candidaturas acontecem até 1 de outubro e devem ser enviadas para joanag@associacaosalvador.com. Devem incluir uma descrição da prática implementada, os seus objetivos, impacto documentada com fotografias ou vídeos.


 

Agenda

Eventos com acessibilidade física, legendagem, Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição. 

Obrigada por terem vindo
Teatro Municipal Amélia Rey Colaço, Lisboa
20 de setembro

Destaque: Um espetáculo de teatro que pensa sobre o fazer teatro. Será que os atores querem mesmo dizer aquelas palavras? Por que é que vemos espetáculos? As minhas ideias serão ideias que eu já tive mas esqueci? É verdade que, no teatro, estamos sempre à procura de desculpas para deixar de fazer teatro? É a estas perguntas que tentaremos responder enquanto fingimos que não estamos a responder a perguntas.

+ informação: Teatro Amélia Rey Colaço

Acessibilidade
– Sessão com interpretação em Língua Gestual Portuguesa.


 

O nariz de Cleópatra, pois claro! 
Teatro Variedades, Lisboa
26 e 28 de setembro


Destaque:

No século XXIII, uma nave viaja ao passado e os passageiros revelam ambições financeiras ligadas à Guerra de Tróia: os descendentes troianos só podem enriquecer se Tróia vencer. A História é alterada e, no regresso ao futuro, todos trocam de papéis sem memória do ocorrido. Agora são os descendentes gregos que procuram o caminho temporal para mudar o desfecho da guerra. Apenas Ulisses se recorda, acompanhado por um insólito coelho falante. Inspirada na frase de Pascal sobre Cleópatra, esta sátira ironiza como pequenos detalhes podem transformar o rumo da História. A frase de Pascal – “se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais pequeno, toda a face da terra teria mudado” – inspira o título desta sátira, ao qual se acrescenta um “pois claro!”. A ironia com que o autor comenta a História exige resposta na mesma moeda.

+ informação: Teatro Variedades | EGEAC

Acessibilidade
Sessões com audiodescrição: 26 e 28 de setembro com reconhecimento de palco uma hora antes.
– Sessão com interpretação em Língua Gestual Portuguesa: 28 de setembro.


Mais sugestões em www.cultura-acessivel.

Scroll to Top
Skip to content
accesslab favicon
Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.