Leio. Leio muito. Talvez mais do que seria socialmente aceitável se o tempo de leitura fosse fiscalizado pela ASAE. E leio apesar de tudo — apesar da falta de acessibilidade, da ausência de vontade política, e de um certo romantismo míope que acha que as pessoas cegas vivem apenas do toque etéreo do Braille e da memória muscular.
Sim, sou cega. E sim, leio livros. E não, não os leio todos em Braille. Vamos já despachar esse assunto: na minha humilde opinião (friso que não falo por toda a comunidade das pessoas cegas) o Braille é importante, sim senhor. Tem o seu lugar. Foi com ele que fui alfabetizada. Foi meu companheiro de infância, deu-me “Os Cinco”, os miúdos de “Uma Aventura”, até o “Harry Potter — O Cálice de Fogo” ocupava mais espaço do que a minha cama (eram 16 volumes — dezasseis!). Fui uma criança feliz entre aquelas lombadas intermináveis. Mas a verdade é que não tenho uma réplica da biblioteca de Hogwarts onde possa arquivar uma produção Braillística em larga escala. C’est la vie.
Hoje, sou uma leitora de outros formatos. E que formatos? Ora, há audiolivros, ebooks com voz sintetizada, PDF lidos a ferros com leitores de ecrã, e, quando a situação exige — porque exige — recorro à “magia negra” das fontes pouco ortodoxas, algumas cujos nomes não devem ser pronunciados. Existem grupos de pessoas cegas com espírito de guerrilha, onde a partilha de livros circula como vinho contrabandeado em tempos de seca intelectual. Há uma certa justiça poética nisso. Já que o sistema não distribui, nós distribuímos entre pares. É o Robin Hood da literatura: tiramos à inacessibilidade para dar à leitura. E agora, existe o Tratado de Marraquexe, (2013), que permite a reprodução e distribuição de obras em formatos acessíveis, para pessoas cegas, com deficiência visual ou outras dificuldades de leitura de texto impresso, sem necessidade de autorização dos detentores dos direitos de autor.
E por falar em livros: compro livros em tinta. Sim, sim, tinta. Gosto do cheiro. De saber que os tenho. Gosto de pedir autógrafos — os autores não conseguem assinar o meu telemóvel, ainda que se esforcem. Além disso, há bibliotecas municipais com serviços de digitalização e correcção (shout-out aos técnicos e voluntários que corrigem OCR como se fosse caligrafia medieval). Por isso, não é assim tão absurdo ter uma estante só minha, mesmo que me escape o conteúdo visual.
Agora, há coisas que me tiram do sério. Vivemos na era da inteligência artificial, da internet das coisas, da torradeira que canta os parabéns, e ainda há plataformas de ebooks de livrarias portuguesas que são inacessíveis. Inacessíveis como quem diz: “não te quero aqui, leitora invisível”. E depois temos os gadgets de leitura, como o Kobo ou o Kindle, que parecem ter feito um pacto de silêncio com a acessibilidade. A sério? Um e-reader que não lê para quem não vê?
Mas enfim. Entre tropeções tecnológicos e criatividade prática, continuo a ler. Com adaptação, com paciência, com alguma frustração e bastante desenrascanço. Se há uma habilidade que muitas pessoas cegas desenvolvem mais rápido que qualquer software, é a arte de contornar obstáculos. E se for preciso dar a volta ao sistema para ter acesso a um romance ou um ensaio filosófico, pois que se dê. Porque a leitura, para mim, não é um luxo. É o meu direito. E eu vou reclamá-lo. Sempre.
Margarida Valente
Ana Margarida Valente nasceu em 1990. É licenciada em Línguas, Literaturas e Culturas e mestre em Tradução pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Atualmente, frequenta o Doutoramento em Belas-Artes, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, com um projeto ligado à inclusão de pessoas com deficiência visual em museus e monumentos.
Megafone
A comediante Tina Friml revela, com muito humor, os “prazeres escondidos” de ser uma humorista com deficiência no seu hilariante set para a Don’t Tell Comedy.
Tina foi eleita uma das 10 comediantes a seguir em 2024 pela Variety. Atua regularmente no Comedy Cellar, já passou pelo Tonight Show com Jimmy Fallon, pelo The Drew Barrymore Show e pelo festival Just For Laughs no Canadá.
Clipping
Prémios Acessibilidade “Best Practices” regressam em outubro
A Associação Salvador vai distinguir empresas que se destacam na inclusão com os Prémios Acessibilidade “Best Practices”, no âmbito do Mês das Acessibilidades.
A edição deste ano apresenta quatro categorias: Vision Accessibility Award, Cognitive Accessibility Award, Physical Accessibility Award e Deaf Accessibility Award, reconhecendo organizações que se evidenciem no trabalho desenvolvido para pessoas com deficiência visual, auditiva, intelectual e física.
As candidaturas acontecem até 1 de outubro e devem ser enviadas para joanag@
Agenda
Eventos com acessibilidade física, legendagem, Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição.
Obrigada por terem vindo
Teatro Municipal Amélia Rey Colaço, Lisboa
20 de setembro
Destaque: Um espetáculo de teatro que pensa sobre o fazer teatro. Será que os atores querem mesmo dizer aquelas palavras? Por que é que vemos espetáculos? As minhas ideias serão ideias que eu já tive mas esqueci? É verdade que, no teatro, estamos sempre à procura de desculpas para deixar de fazer teatro? É a estas perguntas que tentaremos responder enquanto fingimos que não estamos a responder a perguntas.
+ informação: Teatro Amélia Rey Colaço
Acessibilidade
– Sessão com interpretação em Língua Gestual Portuguesa.
O nariz de Cleópatra, pois claro!
Teatro Variedades, Lisboa
26 e 28 de setembro
Destaque:
No século XXIII, uma nave viaja ao passado e os passageiros revelam ambições financeiras ligadas à Guerra de Tróia: os descendentes troianos só podem enriquecer se Tróia vencer. A História é alterada e, no regresso ao futuro, todos trocam de papéis sem memória do ocorrido. Agora são os descendentes gregos que procuram o caminho temporal para mudar o desfecho da guerra. Apenas Ulisses se recorda, acompanhado por um insólito coelho falante. Inspirada na frase de Pascal sobre Cleópatra, esta sátira ironiza como pequenos detalhes podem transformar o rumo da História. A frase de Pascal – “se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais pequeno, toda a face da terra teria mudado” – inspira o título desta sátira, ao qual se acrescenta um “pois claro!”. A ironia com que o autor comenta a História exige resposta na mesma moeda.
+ informação: Teatro Variedades | EGEAC
Acessibilidade
– Sessões com audiodescrição: 26 e 28 de setembro com reconhecimento de palco uma hora antes.
– Sessão com interpretação em Língua Gestual Portuguesa: 28 de setembro.