Brasil e Portugal: que diferenças existem na audiodescrição?

Imagem de Eliana Franco

Em janeiro de 2020, vim da Alemanha para Portugal após duas visitas nos anos anteriores, que me apontaram para o fato de que muito ainda estava por fazer no âmbito da acessibilidade comunicacional, e mais especificamente, da audiodescrição. Era um mercado novo, com inúmeras possibilidades, mas também um filme a que eu já havia assistido no Brasil: um filme de longa duração, enredo repetitivo, mas repleto de cenas memoráveis. Com a chegada da pandemia, comecei a dar cursos intensivos com o intuito de formar uma sólida equipa de audiodescritores portugueses, incluindo consultores com deficiência visual, que não existiam aqui de forma profissionalizada. A visibilidade dos cursos e a qualidade do trabalho, aliadas ao que eu identifico como o desejo por diversidade no restrito mercado da época, levou-me ao cinema, ao teatro, às produtoras e associações culturais.

No âmbito do audiovisual, é fato que Brasil e Portugal começaram a aventurar-se na audiodescrição em 2003, que o primeiro DVD audiodescrito aconteceu nos dois países em anos próximos, 2005 e 2007 respetivamente, e que filmes de cinema audiodescritos aconteciam por iniciativa privada e em caráter experimental. Hoje, porém, os dados entre os dois países são bastante díspares. O cinema acessível nas salas comerciais de Portugal é praticamente inexistente, enquanto que no Brasil, no final de 2019, já havia cerca de 269 salas equipadas para oferecer audiodescrição, além das aplicações de acessibilidade, como a MovieReading, que desde 2015 hospeda lançamentos nacionais e internacionais para o público com deficiência visual e surdo.

No streaminga programação audiodescrita da Netflix, por exemplo, contou 106 itens em português brasileiro em fevereiro de 2022, entre títulos nacionais e estrangeiros, muitos deles disponíveis em Portugal. A Disney Plus apresenta números semelhantes em relação ao Brasil. Em Portugal, a audiodescrição local parece estar vinculada às produções nacionais, e não há dados concretos sobre o volume da programação acessível. Tudo indica que esse pode ser um mercado bastante promissor em face das várias plataformas concorrentes que se instalam no país, mas sobretudo se toda a produção nacional tornar-se acessível, ampliando a oferta para o público diversificado.

No que se refere ao conteúdo televisivo audiodescrito, no último Relatório de Regulação da ERC (2022), constatou-se que a RTP1 e a TVI ultrapassaram em 19 horas e em 64 horas as metas do Plano para programas de ficção e documentários (das 70 e 12 horas anuais obrigatórias, respetivamente). É um avanço, sem dúvida, mas a passos muito lentos, se compararmos com a média de 25 horas semanais de conteúdo audiodescrito que os canais de televisão brasileiros exibem.

A escalada brasileira não aconteceu do dia para a noite, mas de uma convergência de fatores e esforços, dentre eles, no âmbito da legislação, a Instrução Normativa 116/2014 expedida pela Agência Nacional do Cinema (ANCINE), e apoiada pelo Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que obrigou a inclusão da acessibilidade comunicacional no orçamento de toda e qualquer obra audiovisual brasileira fomentada com recursos públicos federais. Logo a seguir, em julho de 2015, é  sancionada a Lei Brasileira da Inclusão 13.146, ou o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que garante o direito de acesso das pessoas com deficiência visual à programação da TV e do cinema, entre outros. Para garantir a exibição nas salas de cinema, a Ancine lança a Instrução Normativa 128/2016, que determina que as salas de exibição comerciais disponham de tecnologia assistiva para a fruição dos recursos de acessibilidade, implementando-a gradualmente. Em dezembro de 2019, lembro da minha emoção ao ouvir a audiodescrição pela primeira vez numa sala de cinema, e na voz de uma colega.

Paralelamente aos marcos regulatórios, e após um estranhamento inicial entre as partes interessadas, professores, pesquisadores, profissionais e o público da audiodescrição uniram-se, cada um na sua frente, para fazer a audiodescrição acontecer: formando audiodescritores e consultores, desenvolvendo estudos de receção, criando e instruindo empresas, formando o coletivo de consultores, dialogando em inúmeras sessões e grupos de whatsapp, divulgando trabalhos de forma democrática, encontrando-se em eventos, prestigiando os trabalhos dos colegas e celebrando as conquistas juntos. E isto faz-me falta aqui em Portugal, se me permitem o desabafo. Oferta e demanda multiplicaram-se, e hoje há espaço para todas as pessoas.

O cenário da audiodescrição tem evoluído aqui, como é para ser, mas parece-me ainda dividido em nichos que não se comunicam muito bem. Noto resquícios de assistencialismo em alguns discursos, e sinto falta da presença de mais pessoas com deficiência visual opinando, divergindo, assumindo o seu protagonismo nesse processo, ocupando massivamente as plateias, as formações e o mercado da audiodescrição. Nesse filme da acessibilidade, onde todos temos um papel a desempenhar, que possamos escrever juntos a próxima cena.

Eliana Franco

Doutorada em Letras pela KULeuven, na Bélgica, Eliana Franco, é especialista em tradução audiovisual e acessibilidade. Começou na audiodescrição em 2004, na Alemanha, e é uma das pioneiras no seu país. Em Portugal, pela FrancoAcesso, coordenou a acessibilidade no cinema (sessão Olhares Acessíveis, 2020 e 21; Mostra Ampla, 2022), a audiodescrição no TBA (2022-23), no TMP-Rivoli (2023 – ), colabora com as associações Alkantara e Parasita, e ministra formações pela Sintagma Lda. É membro permanente do júri técnico do Festival de Filmes com Acessibilidade do Recife VerOuvindo, e autora de vários artigos sobre o tema da audiodescrição no Brasil e na Europa.

 

Megafone

Transformar o que se vê no que se ouve. A audiodescrição traz a componente visual para pessoas cegas ou com baixa visão. É essencial para descrever elementos que, se não forem descritos, é como se não existissem. O mundo por trás da audiodescrição, num vídeo gravado no Centro Cultural de Belém, no espetáculo “Kremerata Baltica”, com a audiodescritora Josélia Neves e Irina Francisco. Realização de Ângelo Bártolo.

Clipping


The Country of the Blind
 
 

Artigo: The Guardian

O livro de memórias de Andrew Leland sobre a perda da visão, convida-nos a repensar as ideias sobre identidade e independência. Articula, de forma magnífica, como o facto de estar preso entre a visão e a cegueira o mudou a ele e às suas opiniões sobre o mundo capacitista. Artigo em inglês.

Agenda

Eventos com acessibilidade física, legendagem, Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição. 

Bárbara Tinoco | MEO Arena 
12 de outubro | Lisboa

Destaque:

Tudo começou em 2018, quando Bárbara Tinoco se apresentou a medo no “The Voice Portugal”. Hoje é jurada no The Voice Kids e um dos maiores exemplos para os jovens artistas portugueses.

+ info: MEO Arena

Acessibilidade: concerto com audiodescrição, interpretação em Língua Gestual Portuguesa e coletes sensoriais. Para usufruir destes serviços, é necessário ter bilhete válido para o evento (para qualquer zona/setor) e enviar um email para acessibilidade@aarena.pt indicando o evento e serviço no qual tem interesse.


MAX

Destaque: A plataforma de serviços de streaming MAX tem recursos e ferramentas de acessibilidade. Há funcionalidades de acessibilidade disponíveis para ajudar pessoas com necessidades específicas auditivas, visuais ou de mobilidade física como sistemas de audição assistida, audiodescrição, comandos de voz ou controlos de luminosidade.


Mais sugestões em www.cultura-acessivel.pt 

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