Bilhete de acompanhante: uma história de discriminação financeira no acesso à cultura

04/12/2025
Raquel Banha

São quase 30 anos aqueles que já vivi – e os mesmos 30 a frequentar espetáculos culturais. O teatro e a música fazem parte da minha sobrevivência desde o dia em que saí do ventre da minha mãe.

Foi a partir de 2014, quando lancei o blog Chairleader e me aproximei do ativismo, que comecei a indignar-me publicamente sobre a acessibilidade na cultura, especialmente a financeira.

A acessibilidade cultural vai muito além dos acessos físicos e atitudinais. O primeiro ponto da jornada de qualquer consumidor com deficiência é, tal como para qualquer pessoa, a compra de bilhetes. Aqui surgem nuances que não podem ser ignoradas: o valor do bilhete da própria pessoa com deficiência e, quando existe necessidade, o valor do bilhete do acompanhante.

Comecemos pelo acompanhante. Uma parte significativa das pessoas com deficiência depende do apoio de outra pessoa para realizar tarefas diárias – desde as necessidades de higiene mais básicas até ao direito de usufruir da vida cultural e cívica. Quem desempenha este papel pode ser um cuidador informal, um assistente pessoal, um amigo ou um cônjuge, independentemente de irem apenas assistir ou também usufruir do espetáculo. A necessidade de apoio é constante, independentemente da identidade de quem acompanha.

No caso da assistência pessoal, qualquer pessoa com deficiência que beneficie deste apoio é responsável por todas as despesas associadas a ele: nomeadamente transportes, e, sobretudo, entradas em espaços pagos, como eventos culturais. O custo de vida das pessoas com deficiência – já naturalmente elevado – duplica quando existe dependência de uma segunda pessoa.

Ir a um espetáculo é uma escolha; ser dependente de alguém não é. E é dever do Estado compensar os cidadãos pelos encargos resultantes das suas (in)capacidades estruturais.

Sabemos que a maioria dos recintos públicos (como os da EGEAC) já oferece o bilhete de acompanhante, medida que tem sido progressivamente adotada pelo setor privado, na cultura e no desporto. No entanto, está longe de ser uma regra transversal. isenção de IVA dos bilhetes de acompanhante foi um primeiro passo legislativo importante, mas não obriga os promotores a disponibilizarem esse bilhete gratuitamente.

Embora seja essencial sensibilizar o tecido empresarial para práticas inclusivas, cabe ao Estado garantir que estas medidas se concretizam – sobretudo quando ainda existem promotores que ignoram deliberadamente os apelos da comunidade.

Para além da gratuitidade do bilhete de acompanhante, é crucial abordar a tabulação de preços. O meu primeiro caso mediático surgiu em 2017, com os 30 Seconds To Mars, quando denunciei o preço injusto dos bilhetes para pessoas com mobilidade reduzida e o facto de termos de pagar a dobrar por necessitarmos de acompanhante. Em colaboração com a Acesso Cultura, foi feita uma queixa à Provedoria da Justiça, que só foi respondida em 2021. Na sua resposta, a Provedoria reforçou a existência de discriminação indireta, sublinhando que pagar o dobro “consubstancia, para não dizer mais, uma gritante injustiça”.

Mais recentemente, nos concertos da Taylor Swift em Lisboa, as pessoas com mobilidade reduzida (PMR) dispunham somente de uma opção de bilhetes a custar €147,50, quando o público geral tinha mais de 20 opções, desde €55,50 a €539. A promotora nunca respondeu às reclamações, embora tenha reembolsado silenciosamente o valor do bilhete de acompanhante – mas sem corrigir a tabela.  No artigo que escrevi poderão consultar as várias tipologias de bilhetes e os seus respetivos valores. 

Regra geral, as limitações técnicas dos recintos impedem a criação de lugares acessíveis em várias zonas, e com isso desaparece a liberdade de escolha. Nestes casos, a solução mais justa é equiparar o valor do bilhete PMR ao preço mais baixo da tabela. Esta prática já existe em alguns eventos e é a única que garante igualdade real de acesso.

Ainda assim, persistem práticas desadequadas. Há dias, nos Ornatos Violeta no Teatro Tivoli BBVA, o único preço disponível para PMR era €45, quando a tabela geral variava entre €20 e €60. A promotora justificou-se com o argumento de que os lugares acessíveis – nas frisas, a única zona com acesso direto – tinham 50% de desconto para ambos os bilhetes. Porém, aplicar o mesmo desconto ao bilhete PMR e ao bilhete de acompanhante desvirtua as duas questões essenciais que aqui abordamos: a falta de opções de escolha e a necessidade do bilhete gratuito para o acompanhante. Descontos não resolvem injustiças estruturais. Precisamos de medidas coerentes com as necessidades reais: mais opções de preço ou, na impossibilidade disso, acesso ao valor mais baixo da tabela, e um bilhete gratuito para o acompanhante – que, na prática, nunca irá pagar 50% do valor.

Por fim, importa recordar que tanto a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ratificada por Portugal em 2009) como a Lei n.º 46/2006, que proíbe a discriminação em razão da deficiência, estabelecem a obrigação de garantir igualdade no acesso a bens e serviços, incluindo a cultura. Um modelo de preços que restringe a liberdade de escolha e impõe custos acrescidos às pessoas com deficiência viola estes princípios fundamentais.

Raquel Banha

* Texto publicado em antecipação, dia 3 de dezembro, no Comunidade Cultura e Arte, pelo Dia Internacional da Pessoa com Deficiência.

** À data em que o texto foi escrito, não havia, por parte do Ministério, um compromisso oficial quanto ao bilhete de acompanhante em equipamentos públicos.

Desde cedo ligada ao mundo das artes performativas, Raquel Banha é ativista pelos direitos humanos das pessoas com deficiência, tendo pertencido à direção da Associação CVI — Centro de Vida Independente entre 2020 e 2024. É embaixadora do Festival Política desde 2021 e colabora frequentemente com organizações e projetos na área da deficiência. No seu blog Chairleader aborda várias questões sociais dentro da deficiência, cultura, saúde mental e sexualidade.  


Clipping


Acompanhantes de pessoas com deficiência vão ter bilhetes grátis a partir de janeiro 

 

Notícia Expresso

A atribuição de bilhete gratuito para acompanhantes de pessoas com deficiência e o selo de certificação para equipamentos culturais acessíveis e inclusivos entram em vigor em janeiro. No Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, a ministra da Cultura esteve no Museu Nacional dos Coches, em Lisboa, para anunciar a aplicação daquelas duas medidas, reconhecendo, aos jornalistas, que há “muito a fazer em matéria de acessibilidades” nos espaços culturais públicos e privados.


 

Agenda

Eventos com acessibilidade física, legendagem, Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição. 

“O Cavaleiro da Dinamarca” – Oficina de Natal | Lisboa

Castelo S. Jorge, Lisboa

7 de dezembro


Destaque:
No silêncio vasto da floresta começa O Cavaleiro da Dinamarca, a história de Natal de Sophia de Mello Breyner: uma viagem feita de passos, encontros e regresso ao lar. Nesta oficina, avança-se pela Idade Média, acompanhando o cavaleiro e o seu espírito de peregrino, descobrindo também o pinheiro como símbolo desta época festiva.

Para terminar, as famílias são desafiadas a criar uma peça natalícia inspirada neste conto luminoso.

+ informação: Castelo São Jorge

Acessibilidade:
– Língua Gestual Portuguesa


 

Perder | Lisboa 

Teatro LUCCA, Lisboa
3 a 21 de dezembro


Destaque:
Amanhã o Elias vai acampar com a avó. Já preparou a tenda, o saco-cama, o cão de peluche, a lanterna e o livro para a leitura antes de dormir. Entre histórias de animais que mudam de pele para crescer ou uivam quando perdem quem amam, ele pensa no que é perder. No caderno escreve um pequeno tratado, nada científico, sobre aquilo que ainda não se ganhou ou ainda não se encontrou.

+ informação: Teatro LUCCA

Acessibilidade:
– Sessão descontraída a 13 de dezembro.

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