Em 2019, quando faço a formação de audiodescrição UEFA, fico perplexo. Quando me é apresentado o conceito, não consigo conceber como é que algo tão óbvio sempre passou desapercebido, a mim e a muita gente.
Adeptos cegos podem ouvir os jogos pelo rádio… Certo, mas errado. E a partir daqui se “arrastou” o atraso e o desconhecimento da audiodescrição.
O adepto cego está privado daquele que é o principal de todos os fatores que fazem parte de um espetáculo de futebol, os 22 homens a correr atrás da bola, as balizas e o golo.
O rádio é, indiscutivelmente, o principal companheiro de um adepto com baixa visão, pois acompanha o jogo de uma forma muito mais pormenorizada do que o comentário televisivo, onde o discurso dos comentadores passa mais pela realização de um diálogo sobre o jogo, com o escasso conteúdo concreto da ação.
Criado como forma de difundir os jogos para o público, é, contudo, idealizado a pensar em adeptos que ou vão aos estádios ou têm o conhecimento do que é um jogo de futebol, um campo, uma baliza, como são os equipamentos, não a pensar num adepto cego.
Mas se colocarmos questões: como e de que cor são os equipamentos das equipas? E dos árbitros? Muitas ou poucas pessoas no estádio? Há bandeiras nas bancadas? Luz artificial ou ainda entra luz natural?; estas dúvidas raramente conseguem ser respondidas através de um relato tradicional.
Posteriormente, em momentos calmos do jogo, onde os defesas de uma equipa trocam a bola longe da baliza adversária, normalmente há lugar para um comentário de análise, e para quem depende totalmente da narração do jogo equivale ao desligar da imagem televisiva.
Tudo isto, contudo, é a experiência do adepto à distância. Um adepto cego que pretenda assistir a um jogo ao vivo acaba por ser quase que “negligenciado” tendo em conta a sua experiência, isto porque a rádio, apesar de poder ser sintonizada através de um rádio conventual, é processada via internet, o que faz com que no momento em que o ouvinte ouve o golo pela rádio, já segundos antes todo o estádio se levantou para celebrar, perdendo a espontaneidade e a fluência que nos faz ir ao estádio.
A audiodescrição coloca-se então em paralelo com a televisão e com a rádio como mais um meio de difusão. A descrição das equipas, dos equipamentos, do estádio, do ambiente, é essencial para começar a pintar a tela na mente das pessoas, e a partir do apito do árbitro a prioridade é sempre dada à bola de jogo, onde é que ela está, com quem está, como está. Em momentos calmos (como já referido, onde “os defesas de uma equipa trocam a bola entre si”) a descrição não só não deixa de ser realizada, como é mais aprofundada, referindo (a título exemplificativo) a altura das meias do jogador com a bola, o pé com que a recebe e passa, acessórios, cabelo, tatuagens, entre demais detalhes.
A emissão é realizada a partir do estádio de forma analógica, assim o sinal chega aos rádios sem qualquer atraso, garantindo uma experiência ideal e permitindo o acompanhamento do jogo em perfeita sintonia com todos adeptos presentes no estádio.
O objetivo principal é simples, permitir que quem ouve o relato se levante para celebrar um golo exatamente ao mesmo tempo do que o restante estádio. Tudo isto é uma mais-valia para estes eventos, pois não se trata de um serviço exclusivo nem de um serviço pago; é algo que todos os adeptos podem usufruir, um serviço com uma preocupação dedicada a pessoas cegas, mas que é para todos.
Miguel Jorge
Miguel Jorge é formado em Gestão de Património com 10 anos de experiência na área. Faz parte da equipa do Serviço Educativo do Museu FC Porto, onde para além da gestão da equipa e de reservas de visitas, participa também no desenvolvimento do programa educativo. Em 2019, após a realização de uma formação através da UEFA, entra no mundo da audiodescrição do futebol, projeto que vem sendo desenvolvido até aos dias de hoje em paralelo com a restante atividade profissional, e que conta com vários trabalhos consistentemente desenvolvidos junto de instituições como a UEFA, AccessibAll, FC Porto, Federação Portuguesa de Futebol, Liga Portugal, Fundação da Liga, a própria Access Lab entre outros.
Megafone
Breve documentário do FC Porto sobre a relevância da audiodescrição nos jogos de futebol. Entrevistas a adeptos cegos e/ou com baixa visão. Todo este vídeo é, também ele, audiodescrito.
Clipping
Sporting inaugura primeiro camarote inclusivo
O Sporting Clube de Portugal inaugurou, no Estádio José Alvalade, uma sala destinada a pessoas com deficiência, surdas e com neurodivergência. “The Green Box” é o primeiro camarote inclusivo num estádio em Portugal.
Quando a deficiência leva a outras formas de tocar música
Uma orquestra de samples, um instrumento que não precisa de ser tocado, objetos comuns repensados… O Público foi conhecer histórias de adaptação.
Agenda
Eventos com acessibilidade física, legendagem, Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição.
Macbeth | Teatro Municipal São Luiz
21 e 23 de fevereiro, Teatro Municipal São Luiz, Lisboa
Destaque: Heiner Müller é uma voz inconfundível na dramaturgia mundial. Feroz e brilhante, brutal e profunda. Em Macbeth, Müller acrescenta uma visão contemporânea à obra de William Shakespeare, mais sanguinária e brutal que de questionamento das barreiras da democracia e dos valores humanos e que, em tempos de guerra, se revela um instrumento de reflexão da Europa contemporânea.
Mais informação:Teatro Municipal São Luiz
Acessibilidade: Língua Gestual Portuguesa e audiodescrição com reconhecimento do palco 1 hora antes do início do espetáculo.