Pendurado no gancho frouxo da liberdade e exposto na montra frágil dos bons costumes, acabaste de superar uma travessia que coloca à prova a tua capacidade de ser incluído por aquele que tem o poder de excluir.
A jornada começou no inicio de dezembro quando escorregaste para dentro de uma nuvem rubro-dourada. Submerso, estiveste cercado de estranhos e conhecidos que se transformam em pessoas irreconhecíveis nesta época do ano quando as virtudes humanas estão em liquidação. Como numa bolha, dentro desta nuvem nada é o que parece. Todos seguem o guião como num teatro psicodélico.
Sobreviveste dentro da nuvem, deixando-se levar pela correnteza de copos, cabritos e perus e, no final desta jornada foste recompensado com o jogo da “liberdade de escolha”. No encerramento da viagem, sob os efeitos provocados por uma sequência quase algorítmica de estrelas e cometas explosivos, pudeste “brincar de escolher”, como se fosse possível decidir o que vais fazer no próximo ano.
Terminada a pirotecnia, regressas ao vazio das relações como regressa ao frigorífico vazio uma família que foi beneficiada pelo efeito das virtudes humanas em liquidação. Como todo sobrevivente, saíste desta correnteza com uma certa embriaguez dos sentidos, sem escolhas.
A “liberdade de escolha” é também o gancho frouxo que tenta sustentar os argumentos à favor de democracias com o nosso modelo económico. Frouxa como a nossa liberdade de expressão quando partilhamos a mesa de fim de ano com os discípulos da meritocracia” (Markovits, 2019).
Se sobreviveste nesta mesa é porque bem sabes como para “ser livre” tens de fazer o possível entre a vontade e a obrigação; entre o que se faz pelos outros e o que se aceita que os outros façam por nós para que sejamos incluídos. Todos nós embarcamos nesta viagem sabendo, no nosso íntimo secreto, da nossa própria exclusão e das concessões que fazemos para estarmos incluídos.
Se nesta época sobreviveste na lista de convidados de uma celebração da empresa, familiar ou com amigos, é porque alguém teve o poder de incluir-te. Estavas na lista porque tiveste o “mérito” de ser incluído e “deves” de ser grato por isso. Mas, intimamente sabes que estar incluído numa lista, como que por decreto, não é um visto de residência permanente. Sabes também que podes estar incluído e experienciar o exílio no território das festas de fim de ano.
Mesmo uma mesa redonda, que simula uma democracia espacial ao não evidenciar as esquinas das hierarquias, não evita a tua exclusão quando “o outro” que está ao teu lado, é sempre diferente de ti.
As convenções sociais que regem a harmonia das festas de final de ano tentam proteger-te com outra lista: a de temas de conversas proibidas. Se não encontraste uma banalidade harmónica como tema de conversação, estiveste calado e à espera do último prato com urgência para desaparecer na casa de banho como quem entra na cabina do superman. E, se a mesa era retangular para acomodar muitos incluídos, podes ter encontrado o conforto naquela esquina, bem à margem, felizmente marginalizado, de onde é possível desaparecer mais rapidamente enquanto assistes de camarote a psicodelia coletiva.
Entre o incluído e aquele que inclui há um pacto de boas maneiras, como o brilho para as relações civilizadas que os anfitriões assumem a responsabilidade de polir (Jackson & Rao, 2022). Mas este pacto é frágil como uma montra de cristal que expõe uma cena onde o incluído e aquele que inclui interpretam os seus personagens. O brilho que ofusca as hipocrisias precisa ser polido continuamente porque, como a liberdade de escolha é frouxa, um individuo que queira exercer essa liberdade pode embaçar o cristal da montra ou estilhaçar o pacto.
Sobreviveste na esquina ou ao redor de qualquer mesa nestas festas de fim de ano porque engoliste calado uma fatia da tua diferença. Calaste a tua exclusão para estar incluído e respeitaste o decreto dos assuntos proibidos. E todos nós, cúmplices e em silêncio, estivemos a manter o estado das coisas como estão porque, afinal, estamos bem, não? Nos protegemos como fazem os insetos que adquirem a cor da folha para não serem as presas do predador.
Te mimetizas porque o bicho humano tende a expulsar o diferente (Han, 2018) e as gestões públicas não estão a fazer muito para humanizar os bichos que somos. A exclusão da tribo é cruel e consegue que sejamos nós que nos excluamos de forma voluntária quando nos calamos.
Te mimetizaste, te fizeste igual aos demais e por isso sobreviveste. Usaste a tua liberdade de escolha para estar calado e manter a harmonia, preservando a fragilidade da montra e a frouxidão do gancho. Te mimetizaste, não chamaste muito a atenção. Não provocaste o dissenso.
Sobreviveste porque não notaram que és existencialmente diferente. Não partilhaste as tuas escolhas realizadas com a liberdade que os que estão ao teu redor dizem defender. Aguentaste-te e fizeste-te invisível. Inflaste os teus pulmões para sobreviver submerso na nuvem lisérgica até chegar à terra de janeiro.
Mas agora que estás em terra firme e recuperaste os sentidos, podes exercer a tua liberdade de escolha de forma consciente. Podes romper a bolha, partilhar a tua fatia de exclusão e ocupar o lugar daquele que inclui. Podes escolher incluir e decidir se queres ser incluído. Podes experimentar viver sem ganchos e montras cambaleantes.
Se chegaste até aqui, podes recuperar o fôlego e escolher outras travessias acompanhado de todas as diferenças possíveis. Podes começar a escolher confraternizar de forma genuína ao redor de uma mesa sólida onde o prato principal seja a ignorância que é de todos. E, para a sobremesa, oferecer um bolo de surpresas que proporcionam o encontro com “o diferente” e o que com ele podes aprender sobre racismo, deficiências, xenofobia, preconceito, politica, vida, morte e medo.
Que em 2025 nos proporcione pelo menos uma festa assim, para celebrar a nossa frágil humanidade com liberdade.
Cintya Floriani
Cintya Floriani Hartman é jornalista, especialista em Estratégias de Comunicação pela Universidade de São Paulo e em Gestão Pública pela IE Business School de Madrid. Conselheira para transformação de cultura organizacional em conselho de gestão de empresas. É gestora de projetos de inovação, desenvolvimento de lideranças e comunicação para gestão de clima e organizacional nos setores público e privado. Doutora em Artes -Teatro pela Universidade de Lisboa, realizou a primeira investigação em língua portuguesa sobre a experiência estética da pessoa cega na plateia de teatro. Acaba de lançar o livro “Theasthai: o poder se não ver”, onde analisa as diferenças existenciais como motor para a criação e a inovação. O seu próximo projeto investigativo é percorrer o trajeto do envelhecimento como quem explora um novo território para nele habitar.
Megafone
Clipping
Deficiência: sistema para obter apoio “é confuso e muito demorado”. Espera por financiamento pode demorar um ano.
Para obter produtos como cadeiras de rodas e próteses, as pessoas com deficiência, doentes e idosos “enfrentam um sistema extremamente burocrático, fragmentado, confuso e muito demorado”, alerta a provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral. Embora a lei defina que o prazo entre o deferimento e o financiamento não deve exceder 30 dias, “as falhas no sistema contribuem para tempos de espera que frequentemente ultrapassam um ano”.
Agenda
Eventos com acessibilidade física, legendagem, Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição.
Carolina Deslandes e Diogo Clemente | Lisboa e Porto
25 de janeiro, Coliseu dos Recreios, Lisboa
7 de fevereiro, Coliseu Porto Ageas, Porto
Destaque: Depois de lançar “A Vida Toda”, Carolina Deslandes e Diogo Clemente decidiram abrir datas em Lisboa e no Porto, uma numa livraria que já não existe e outra na cozinha de um hostel. De dois concertos passaram a 10, todos esgotados em 10 minutos.
Ambos têm vindo a compor alguns dos mais relevantes temas do cancioneiro contemporâneo português. Agora, estas obras vão estar disponíveis em mais uma das três línguas oficiais do país — a Língua Gestual Portuguesa. A componente cénica do espetáculo “Eu e Ele” vai ser também audiodescrita nestas duas noites.
Coliseu Lisboa: Site oficial
Coliseu Porto: Site oficial
Acessibilidade:Para garantir a visibilidade da interpretação em LGP, as pessoas Surdas são aconselhadas a comprar bilhetes nos setores do lado esquerdo da sala. As pessoas com deficiência visual podem adquirir bilhete para qualquer setor, é no entanto, necessário o envio de email para info@oittoagencia.com a pedir informação sobre a aplicação que estará disponível nos dias dos concertos e que permite que a audiodescrição seja acompanhada em pleno.