Estávamos em 2018, e eu estudava no último ano da universidade, quando descobri o conceito de acessibilidade como deve ser. Até lá, não conhecia muito além da iconografia, das rampas que ia encontrando aqui e ali, da interpretação em Língua Gestual Portuguesa que via ocasionalmente na TV. Até que entrou o primeiro aluno cego para o curso, dois anos abaixo do meu. A presença de um aluno cego num curso de jornalismo trouxe novas perspectivas, e muito questionamento à forma como as coisas eram feitas porque sempre tinham sido feitas assim.
No mesmo ano, propuseram aos alunos da minha turma de jornalismo fazer um trabalho sobre deficiência que seria publicado na revista Plural&Singular. O meu grupo de trabalho escolheu fazer uma peça sobre o acesso à cultura, com um foco particular nos museus e nos visitantes cegos. Percebemos na altura que já havia um caminho percorrido, mas que estava muito por fazer. Não só no que diz respeito ao acesso à cultura, mas também no acesso à informação. O guia de boas práticas para jornalistas, da Dora Alexandre, foi-nos muito útil para sabermos a linguagem certa a utilizar, mas ainda que já existisse na altura, muitas das notícias que líamos para nos informarmos para o artigo não eram representativas desse trabalho que já estava feito.
Maior parte das notícias que se liam na altura eram, felizmente, um pouco diferentes das que lemos agora. Há hoje mais representatividade de pessoas com deficiência, histórias contadas na primeira pessoa, textos escritos com a terminologia adequada. Mas continua a haver muito por fazer: e parte desse muito por fazer passa por trazer histórias de pessoas com deficiência, as suas perspectivas e o seu lugar de fala para as demais áreas da sociedade. E para opinarem sobre uma série de outros temas em que têm um contributo importante a dar. Não faz sentido fazer algo sobre a deficiência sem pessoas com deficiência — nunca fez, nunca fará.
Seis anos depois daquela peça para a universidade, já enquanto editora do Shifter, recebi com muito entusiasmo um desafio do Tiago Fortuna: por que não fazer uma edição da revista que publicamos em papel sobre deficiência? No Shifter sabemos que não somos especialistas no assunto, há quem pense nisto muito melhor do que nós, mas queremos trazer a deficiência para cima da nossa mesa. Para próximo de todas as outras reflexões que compõem o Shifter, que é um projeto editorial que se dedica à reflexão e crítica sobretudo nas áreas da tecnologia, cultura e sociedade. Convidámos pessoas que pudessem escrever sem intermediários, e que consideramos que têm algo mesmo importante a dizer, e o resultado foi uma edição que tem a deficiência e a neurodiversidade no centro, mas que viaja pela mobilidade, a habitação, a sexualidade, o cinema, a tecnologia, a linguagem, a música.
Sabemos que uma revista não resolve nada. Queremos que seja um ponto de partida para pensar a diversidade e reposicionar estes temas no panorama mediático. Podemos pedir-vos que nos leiam?
Carolina Franco
Tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e mestrado em Antropologia – Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.
Megafone
Clipping
Revista Shifter
Editorial: A Revista Shifter #6 é dedicada à deficiência e neurodiversidade. Não por nos considerarmos especialistas, que não somos – e há em Portugal quem pense nisto muito melhor do que nós – mas porque sentimos a necessidade de trazer estes temas para cima da nossa mesa. Para junto de todas as outras reflexões que compõem o Shifter. Queríamos ter mais vozes de pessoas com deficiência no Shifter, em particular nesta edição. Momentos em que pudéssemos ouvir, ou neste caso ler, experiências na primeira pessoa, sem qualquer filtro ou intermediário que pudesse distorcer ou suavizar o discurso – é por isso que desta vez temos mais crónicas e artigos de opinião. Mas também queríamos relacionar os nossos temas-chave, como a tecnologia ou as culturas visuais, e aportar a nossa perspectiva, trazer a deficiência para o centro das nossas reflexões.
Agenda
Eventos com acessibilidade física, legendagem, Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição.
TPC: Frei Luís de Sousaaa | Moonspell + Orquestra Sinfonietta de Lisboa | MEO Arena
18 a 20 26 de outubro | Lisboa
Destaque:
A Joana levou os seus colegas do 11.ºB para sua casa. Estão fechados no quarto e têm um TPC de Português para fazer: uma apresentação sobre a peça Frei Luís de Sousa. O que começa por ser uma corriqueira discussão sobre o que os afasta e aproxima daquelas palavras, acaba por se tornar o trabalho de casa mais entusiasmante de sempre.
+ info: Site oficial
Acessibilidade: sessões em Língua Gestual Portuguesa (18 de outubro), sessão descontraída (20 de outubro), todas as sessões acessíveis para pessoas surdas.