Viver em dois mundos: o dos Surdos e o dos ouvintes

Imagem de Sebastião Palha com o título: "Viver em dois mundos: o dos Surdos e o dos ouvintes"

Vivo entre dois mundos. Desde miúdo que me lembro de ter um pé no mundo dos ouvintes e outro no mundo dos surdos. Por outras palavras, num falava oralmente e noutro comunicava por língua gestual.

Estar entre dois mundos exigiu de mim um verdadeiro jogo de cintura. Eu tentava equilibrar-me constantemente para conseguir fazer parte dos 2 mundos porque os meus amigos são surdos. No entanto, a minha família é ouvinte. Por um lado, possibilitou-me uma série de vivências pessoais incríveis, mas, por outro, vivi algumas dificuldades. Quando tinha um ano e meio, diagnosticaram-me surdez no meio de uma família de ouvintes. A minha língua materna, a minha primeira língua, foi a língua gestual portuguesa que me proporcionou um desenvolvimento global saudável e típico.

Não tive uma infância necessariamente diferente às dos outros. Na verdade, a surdez permitiu-me descobrir uma cultura que não está ao alcance da maioria das pessoas! Nós, os Surdos, somos uma comunidade, uma minoria linguística com uma cultura própria. Uma cultura rica em tantos sentidos e níveis. Na verdade, aprendi e continuo a aprender a maioria das lições, que adquiri até aos dias de hoje, através da surdez.

Com 11 anos, comecei a frequentar escolas regulares onde estava integrado em turmas de alunos ouvintes. Em todas elas, eu era o único surdo. A dada altura, sentia um choque pois sentia-me uma espécie de extraterrestre por não me encontrar no meu “habitat” natural, que era o mundo dos surdos como acontecia nas escolas de referência para educação bilingue de alunos surdos.

Tinha eu 20 anos quando me apercebi que não sentia uma verdadeira pertença a nenhum dos mundos. Sentia-me apenas a flutuar sem ter uma âncora, o que não me oferecia uma vivência estável.

É verdade que falava 2 línguas, a língua oral e a língua gestual, o que me permitia comunicar. Mas a verdade é que não sou ouvinte pois apesar de conseguir oralizar e fazer leitura labial, ainda vivia muitas barreiras no dia a dia. Mas também não tinha identidade surda que me fizesse sentir integrado na comunidade surda.

Este meu sentimento de não pertença culminou na decisão mais difícil da minha vida. Em 2014, decidi que devia colocar um implante coclear na tentativa de me sentir mais integrado na comunidade ouvinte. Na altura, pareceu-me ser a escolha certa, no entanto, não podia estar mais enganado. O que quero dizer é que fiz o que fiz por causa dos outros, para me sentir mais “próximo” dos outros e não com o objetivo de me facilitar a vida.

No entanto, acabou por ser uma decisão muito importante. Por causa do implante coclear, percebi que não preciso de pertencer a um só mundo. A surdez, a audição, a língua gestual, a língua oral, o implante coclear, as próteses auditivas não ditam como devo ser enquanto pessoa. São apenas recursos internos e externos que podem moldar uma pessoa, mas nunca defini-la.

Descobri que isso tudo são ferramentas que nos permitem integrar de uma forma ou de outra. O implante coclear enquanto tecnologia de apoio proporcionou-me todo um novo mundo para além da língua gestual. Graças ao implante coclear, pude experienciar vivências únicas, tais como ouvir a minha respiração, o mar, a música, o vento…

O implante coclear pode ser uma tecnologia de apoio que não tem de excluir a língua gestual, posso viver em ambos os mundos sem abdicar da minha identidade enquanto Sebastião e não como alguém que se parece como ouvinte ou seja definido por ser surdo. No fundo, podem complementar-se! Por causa da minha experiência de vida, encaro o mundo de várias perspetivas, exatamente por conseguir integrar-me em diferentes comunidades, culturas e línguas.

Sebastião Palha

Sebastião Palha teve a oportunidade de adquirir a LGP como língua materna. Em 2016, tornou-se Psicólogo da Educação pelo ISPA e, desde 2015 até aos dias de hoje, atua em diferentes projetos relacionados com a surdez, principalmente em intervenções escolares com crianças e jovens surdos. Através da ONDG WACT e com uma grande paixão pela área do empreendedorismo social, implementou em São Tomé e Príncipe durante dois anos um projeto de Educação Inclusiva Não Formal para Surdos em colaboração com a Associação de Surdos de São Tomé e Príncipe, o Instituto Marquês de Valle Flôr e o Instituto Camões, em parceria com o UNICEF. Em 2023 doutorou-se em Ciências da Cognição e da Linguagem. É atualmente psicólogo na Valor T – um projeto da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa que procura promover a integração da pessoa com deficiência ou Surda no mercado de trabalho e faz acompanhamento psicológico em LGP a crianças, jovens e adultos Surdos em clínicas. Tem a missão-sonho de se tornar consultor de referência na área de educação e psicologia para surdos.

 

Amplificador

Quem acompanhou pessoas com deficiência no MEO Kalorama, não pagou bilhete. A medida fazia parte do plano de acessibilidade do festival. No entanto, a lei não prevê que uma pessoa com deficiência que necessite de acompanhante para a sua autonomia, possa entrar acompanhada sem que esta pague bilhete. Uma reportagem SIC Notícias.

 


Clipping

Sem dormir, com crises de ansiedade e Billie Eilish: o meu primeiro festival de música enquanto pessoa com autismo 

Ler artigo – The Guardian

Desde a sua adolescência que Nicholas Fearn sempre quis ir a um festival de música. Mas, como pessoa com autismo, a ideia de ficar encurralado numa multidão barulhenta e desordeira de dezenas de milhares de pessoas sempre o assustou. Durante anos evitou-os. Em vez disso, via os seus amigos a divertirem-se nos grandes festivais à margem das plataformas de redes sociais. Um testemunho na primeira pessoa.

 

Agenda

Eventos com acessibilidade física, legendagem, Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição. 

Teatro do Bairro Alto | Orlando et Mikael

9 e 10 de setembro, Lisboa

Destaque: Orlando e Mikael conhecem-se na gravação de uma entrevista sobre a sua operação de mudança de género. Uma conversa íntima sobre escolhas substanciais, o desejo de ser amado e o sonho de se encontrar. Regretters foi a primeira peça de teatro documental de Lindeen. Criada em 2006, abriu um trabalho entre teatro e cinema. A peça deu origem a um documentário em 2010. Orlando et Mikael é uma nova versão do texto, debruçando-se sobre os arquivos do filme para reexaminar a história de Orlando e Mikael e compreender o que ela significa hoje, numa época em que uma grande diversidade de identidades trans reivindica o seu lugar no discurso público.  

+ info: Teatro Bairro Alto

Acessibilidade: Em francês, com legendas em português (disponibilizadas via smartphone).



Montanha Russa | Cineteatro Louletano

9 e 10 de setembro, Loulé

Destaque: Uma das comédias mais populares de Shakespeare, Noite de Reis é um tesouro de ambivalência tragicómica no seu chiaroscuro constantemente revelado na própria escrita. Um retrato profundamente simples e cómico e por vezes profundo e existencial, personificado pelas trocas de identidade, disputas amorosas, constantes folias e partidas.  

+ info: Cineteatro Louletano

Acessibilidade: A sessão de 10 de setembro tem Língua Gestual Portuguesa e audiodescrição, para pessoas cegas ou com baixa visão.


Mais sugestões em www.cultura-acessivel.pt

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