Podia escrever imenso sobre diferença: por um lado, queremos ser diferentes, embandeiramos para destacar aqueles incríveis atributos que nos tornam únicos; por outro, ambicionamos ser iguais, fugimos a sete pés do que possa fazer com que sejamos olhados com outra atenção. O ser humano é estranho e, na maioria das vezes, não sabemos como lidar com essa estranheza. É fácil dizer “todos diferentes, todos iguais” e lembrar que nos idos de 1948 a ONU proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos onde a tal premissa da igualdade ficava cravada. Tantas décadas depois, porém, estamos longe dessa equidade.
É ridículo, mas, olhando para as arcaicas definições sociais, sou aquilo a que se chama uma privilegiada: no que diz respeito às mulheres ainda há muito para fazer mas nasci branca, heterossexual e sem qualquer deficiência. Posso decidir o que fazer, como, quando e com quem. Ainda mais: posso decidir fazer sozinha. São privilégios? São – mas não deviam ser.
Sou jornalista de música há mais de 25 anos e, como tal, uma boa parte das minhas funções sempre passou pelas reportagens de concertos e festivais. Como a maioria das pessoas, passei a vida a encher a boca para dizer que, quando olho para alguém, vejo quem é e não o que é – até que fui obrigada a perceber que, tão arrogante que estava de que era parte da solução, não compreendia metade do problema. Adorava que as plataformas de mobilidade condicionada estivessem vazias porque isso permitia-me filmar numa zona tranquila, sem compreender a real razão para que esses espaços estivessem assim. Mais: não pensava se os recintos tinham os seus pisos acessíveis, achava que era igual dizer “linguagem gestual” e “língua gestual” ou “pessoa deficiente” e “pessoa com deficiência”. Estava tão metida na minha “normalidade” que não olhava à volta e, pior, não aprendia. Ao não aprender nunca poderia passar a verdadeira mensagem.
Até que conheci o Tiago e comecei a ir a concertos com ele. Fui entendendo como um pequeno degrau pode ser um enorme obstáculo ou como é limitativo querer ir a um espectáculo e ter que pagar dois bilhetes completos – porque os promotores acham que a necessidade de um acompanhante não passa de uma estratégia para alguém entrar à borla. Sempre me queixei de ser baixa e não conseguir ver o palco mas nunca tinha vislumbrado como é importante ter condições dignas para se poder estar num recinto com os mesmos acessos do público geral. Alguma vez tomaram consciência que a altura do balcão de um bar pode ser um desafio ou que, quando se está numa cadeira de rodas, a higiene de uma casa de banho faz toda a diferença?
No ano passado, o Iminente apostou numa série de melhorias, ao nível da acessibilidade, e chamou a Access Lab para colocar muitas destas iniciativas em prática. Fizeram dois documentários onde uma boa parte do que descrevi se torna mais claro. Como em tudo na vida, falar é fácil: colocar a mão na consciência, admitir as nossas culpas e assumir o tanto que há para fazer é muito mais difícil. De lá para cá, sei que aprendi muito mas essa aprendizagem fez-me querer saber ainda mais. Convenço-me de que nunca fiz parte do problema mas assumo que adorava fazer parte da solução – é esse o meu compromisso. Talvez a tal premissa fundamental do “todos diferentes, todos iguais” ainda esteja longe mas (quero acreditar!) estamos muito mais perto.
Ana Ventura
* Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.
Licenciada em Ciências da Comunicação, Ana Ventura é jornalista, tendo começado o seu percurso na redacção do jornal BLITZ. Autora do programa M de Música, tem colaborado com a SIC Radical e com a plataforma de streaming HBO, além de ter assinado as autobiografias dos Xutos & Pontapés e Magazino. Em Abril, publicou o seu quarto livro, “Uma Página da História”, a primeira biografia dos Da Weasel.
Amplificador
Clipping
De bloco em bloco, Filipa Rocha constrói aulas de programação mais inclusivas
Ler reportagem – Jornal Público
“Uma ferramenta de aprendizagem digital mais inclusiva tornou Filipa Rocha uma das finalistas do Prémio Jovens Inventores 2023. A estudante de doutoramento na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e professora assistente no Instituto Superior Técnico, desenvolveu um projecto que junta blocos físicos e um programa de computador para ensinar crianças cegas e com baixa visão a programar.”
Agenda
Eventos com acessibilidade física, legendagem, Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição.
São Luiz Teatro Municipal | Isadora, Fala!
Até 9 de junho, Lisboa
Destaque: Isadora Duncan sobe a cena neste texto criado por Rita Lello, em colaboração com Eugénia Vasques, a partir do itinerário proposto na poesia de Graça Pires em Jogo Sensual no Chão do Peito e da prosa da própria Isadora recolhida de várias fontes. À Língua Gestual Portuguesa Rita Lello e Amélia Bentes vão colher inspiração para acompanhar a palavra dita em cena com sequências da palavra em movimento, da palavra impressa no espaço através do corpo da intérprete acompanhado por uma sonorização imersiva que envolve a palavra que se move, e exprime a memória da atribulada sensibilidade de uma das mais significativas pioneiras da dança contemporânea.
+ info: Teatro São Luiz
Acessibilidade: Interpretação em Língua Gestual Portuguesa (Sessão a 9 de junho).
Teatro Municipal do Porto | Elas entram e saem
16 e 17 de junho, Porto
Destaque: Em “Elas entram e ficam!”, de Tânia Diniz, desdobramo-nos sobre o que poderá ser o arquivo, a documentação de uma política cultural numa companhia de teatro, e a sua relação socioeconómica. Tem como ponto de partida os textos, as peças, as notícias, e o arquivo fotográfico dos registos dos ensaios e espetáculos da companhia ao longo dos 70 anos. Uma viagem, que pretende traçar uma linha temporal, permitindo construir uma nova narrativa, refletindo sobre o papel, as histórias e micro-histórias das personagens femininas, representadas até ao momento.
+ info: Teatro Municipal Porto
Acessibilidade: Interpretação em Língua Gestual Portuguesa.
Mais sugestões em www.cultura-acessivel.pt