Escrevo este relato na qualidade de Mãe de uma criança cega procurando dar o meu testemunho sobre o acesso à cultura para crianças e jovens com Deficiência Visual (DV). Começo por fazer referência ao significado da palavra “Cultura” na acepção que aqui importa discutir: “Conjunto dos conhecimentos adquiridos de uma pessoa ou grupo (…) “cultura”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. É este conjunto de conhecimentos, provenientes de experiências, da mais diversa ordem, que os pais de crianças cegas e com baixa visão pretendem dar aos seus filhos nas mesmas circunstâncias que os pais de crianças que não têm qualquer limitação. Contudo, desde cedo nos deparamos com uma barreira no acesso a atividades/recursos de âmbito cultural.
No meu caso, lembro-me das primeiras frustrações sentidas por não encontrar no mercado livros ou jogos adaptados para uma criança com cegueira. Face a esta escassez, a solução foi criar, eu mesma, esses materiais socorrendo-me da ajuda de pessoas que já tinham passado pela mesma situação.
Talvez esta seja uma das primeiras formas de confrontação dos pais com a deficiência dos filhos vista para além dos mesmos, acabando por dar a esta deficiência uma maior expressão e um peso que transcende a condição física, neste caso sensorial. Outra memória que guardo foi quando numa atividade de Natal, na creche do meu filho, foi proporcionado um momento de teatro para as crianças. Ele tinha cerca de dois anos e meio e na altura estava muito feliz por nesse dia poder ter uma experiência diferente na escolinha: ia ao teatro pela primeira vez. Quando o fui buscar e lhe perguntei se tinha gostado do teatro, não deu grande importância e pareceu-me sem opinião, o que não era normal. Percebi depois que se tratou de uma peça de teatro mudo em que as personagens comunicavam por gestos e toda a informação era visual. Fiquei frustrada e muito arrependida por ter submetido o meu filho àquela experiência que poderia condicionar a sua perceção sobre o que é o teatro e consequente motivação para este tipo de eventos.
Percebi então que era urgente procurar iniciativas que fossem acessíveis e que permitissem às crianças com DV “adquirir conhecimentos” de forma prazerosa. Por essa razão, juntei-me a outros pais e mães de crianças cegas e com baixa visão e fundámos a Associação Bengala Mágica (ABM) em outubro de 2017. A par de outros objetivos a ABM procura não só organizar e dinamizar momentos culturais para TODOS como também ajudar outras instituições a proporcionarem iniciativas acessíveis do ponto de vista das necessidades das crianças com DV.
Contudo, a oferta continua a ser escassa e muito circunscrita. Quando o meu filho era mais pequeno ele contentava-se com o que havia e lá ia sem grandes questionamentos. Mas agora, com 7 anos, já tem interesses próprios, como as outras crianças da sua idade. Várias vezes já me pediu para ir ao cinema, ver o filme x ou y, com o primo ou com algum amiguinho, mas nunca o levei para que não fique com uma ideia errada do prazer que pode tirar de uma sessão de cinema. Gostava de poder levá-lo ao cinema, mas a verdade é que nunca encontrei uma sessão de cinema, correspondente aos seus interesses, com audiodescrição. Há uns meses pediu-me para ir ver uma exposição muito badalada no cenário infantil, liguei para o local perguntando se uma criança que não vê com os olhos poderia tocar nas peças (Lego), disseram-me que não, pois estavam em vitrinas. Não o submeti a mais essa frustração e acabei por desviar a atenção deste seu interesse. Isto acontece muitas outras vezes e, nesta inacessibilidade constante, vejo que a Deficiência do meu filho na verdade está fora dele. Não é ele que não está apto a receber o mundo, o mundo é que não está apto a acolhê-lo do jeito que ele é. Porquê?
Dídia Lourenço
Dídia Lourenço é Doutora e Mestre em Educação, exerce funções docentes na área da Educação Especial e na Formação de Professores no Ensino Superior. É uma das Sócias fundadores da Bengala Mágica e Presidente da Direção desde outubro de 2021. É mãe de uma criança cega com 7 anos de idade.
Amplificador
Woodkid for the Paris 2024 Olympic and Paralympic Games – Prologue Durante cerca de seis minutos e meio, Woodkid desenrola a passadeira vermelha com o Prólogo para os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Paris 2024. Um crescendo magistral. |
Agenda
Eventos com acessibilidade física, legendagem, Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição.
A Praia
17 de Julho, Teatro São Luiz, Lisboa
De Peter Asmussen e encenação de João Reis
Destaque: Dois casais, Jan e Sanne e Benedikte e Verner, conhecem-se acidentalmente durante umas férias de verão, num hotel isolado no litoral da costa nórdica. “Os poucos hóspedes que aqui aparecem são sempre esquisitos e preferem manter-se isolados”. É a partir deste enunciado, lançado no início da peça, que Peter Asmussen retira o pretexto para justificar a aparente afasia e disfunção das suas personagens. O espetáculo, encenado por João Reis, leva-nos por desassossegos, estranhas melancolias e ironias, sempre com necessidades de consolo impossíveis de satisfazer.
+ info: Teatro São Luiz
Acessibilidade: Língua Gestual Portuguesa e audiodescrição.
Exposição “Ilustrare”
16 de Julho, Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa
Destaque: Visitas orientadas com audiodescrição às exposições: “Grupo do Risco – desenho em cadernos e fotografias“, “Illustrare – Viagens da ilustração científica em Portugal” e “Variações Naturais – Uma viagem pelas paisagens de Portugal“, inseridas no programa Lisboa Capital Verde Europeia 2020. Para crianças (até aos 12), jovens (13-17), adultos, seniores.
+ info: Museu Nacional e de História Natural
Acessibilidade: Língua Gestual Portuguesa e audiodescrição.
Visita Casa Fernando Pessoa
16 de Julho, Casa Fernando Pessoa, Lisboa
Destaque: Visita à Casa Fernando Pessoa. Para jovens (13-17), adultos ou seniores.
+ info: Casa Fernando Pessoa
Acessibilidade: Língua Gestual Portuguesa e audiodescrição.
Mais sugestões em www.cultura-acessivel.pt