Em minha casa, todos comunicavam em língua gestual

Citação de mariana Bártolo: Em minha casa, todos comunicavam em língua gestual"

Uma criança Surda, que não ouve um único som, nasce numa família de médicos, músicos e artistas. A mãe é cantora de ópera e o pai é engenheiro. Cresce neste ambiente ambivalente, entre a Ciência e a Arte. Enquanto se punha em cima de colunas de som para dançar sentindo as vibrações, poderia também estar a dissecar um coração de porco, explorando a sua anatomia.

Foi esta díade de interesses desde cedo em mim incutida que me levou a querer ser médica veterinária e, mais tarde, médica de pessoas. Dizem assim que me tornei na primeira médica Surda de nascença e que comunica através da Língua Gestual Portuguesa. Este percurso, desde o primeiro ano de escolaridade até à conclusão do curso de Medicina, não seria possível sem a educação bilíngue e bicultural a que acedi ao longo da minha vida. Não tive nada mais que a possibilidade de comunicar com o mundo ao meu redor, de uma forma que foi linguística e culturalmente natural, através da Língua Gestual Portuguesa e da Língua Portuguesa, nomeadamente escrita, e do contacto com os meus pares Surdos adultos, que me moldaram com as suas experiências, histórias e lutas numa sociedade inacessível.

Contudo, o sistema educativo atual ainda utiliza as crianças Surdas como cobaias, enquanto as evidências histórica e científica apontam claramente para a necessidade da aquisição precoce da linguagem – de uma forma de comunicar -, para que estas possam desenvolver-se na mesma plenitude que as que ouvem, a níveis cognitivo e psicossocial. Muitas vivem privadas da comunicação e a solução imediata, embora pouco frequente, é tão simples quanto dar-lhes uma língua que é de aprendizagem natural para elas – através das mãos, da expressão corporal e da visão. Através da língua gestual, podem aceder desde bebés à comunicação, à transmissão e aquisição de conhecimentos, à língua escrita e, por tudo isto, à cultura do meio em que vivem.

Em minha casa, todos comunicavam em língua gestual e a minha cultura, enquanto Pessoa Surda, enraizou-se junto à que era vivida em família e que me era acessível. Ao longo da minha infância, acompanhei a minha mãe em muitos concertos e lembro-me de ficar fascinada com as óperas do Teatro Nacional de S. Carlos, que por serem cantadas noutras línguas como o italiano e o alemão, eram legendadas num monitor, mas o mesmo não acontecia com os espectáculos em português, mesmo tendo as condições para haver legendagem.

Na televisão e no cinema, apareciam várias vezes os filmes do Manoel de Oliveira, mas que nunca tive a oportunidade de ver, por, obviamente, serem portugueses e não serem legendados. Os meus (e de muitos Surdos da minha geração) desenhos animados favoritos eram somente os que eram legendados, como o Doraemon, ou até os que não eram falados, como Tom & Jerry. O Mr. Bean, então, era o rei das nossas televisões. Já em adolescente, eu e os meus amigos Surdos íamos a correr para casa depois das aulas para assistirmos aos Morangos com Açúcar, que tinham teletexto – o 888 que se premia no comando da televisão e, como por magia, as legendas apareciam.

Vinte anos depois, todos os desenhos animados são dobrados e os conteúdos portugueses teimam em não ser legendados. Existem cada vez mais iniciativas interessantes e acessíveis, mas ainda pensadas por quem não conhece o mundo Surdo – a falta de representatividade é o que ainda peca em muitas áreas. Naquilo que poderia funcionar na perfeição, o público Surdo é reduzido porque não conhece ainda esta raridade dos programas culturais acessíveis e acaba por não participar neles.

O pouco que estrategicamente podíamos aceder, foi definindo o que apreciamos ou não no sector da Cultura e, no fundo, tornou-se parte da própria Cultura Surda. Verdade seja dita, os padrões da maioria e quem está envolvido na criação e na gestão dos programas culturais não podem nem devem definir do que gostamos ou não, muito menos naquilo que é para nós um direito humano. Aceder à Cultura, em todas as suas dimensões e conforme as nossas preferências, deveria ser tão natural quanto respirar.  

Mariana Couto Bártolo

Nascida em Setúbal e criada em Lisboa, no seio de uma família de músicos e médicos, Mariana Couto Bártolo é Surda profunda e orgulhosamente nativa em Língua GestualPortuguesa. Médica inscrita na Ordem dos Médicos desde 2021, tem vindo a desenvolver várias formações de sensibilização para profissionais de saúde e capacitação de intérpretes de Língua Gestual Portuguesa para o atendimento e comunicação com as Pessoas Surdas no contexto de saúde. Recentemente, criou a página de instagram @uma.medica.surda onde partilha o seu dia-a-dia, naquilo que considera ser uma vida perfeitamente normal e feliz, como forma subtil de eliminar o capacitismo e o preconceito em relação às Pessoas Surdas e não só.

Descodificador

Porque escrevemos pessoas Surdas e surdas? 

Quando escrevemos “pessoas Surdas” referimo-nos à comunidade Surda que fala língua gestual. Uma vez que falam uma língua, as pessoas Surdas – com S maiúsculo – consideram-se parte de uma minoria linguística. O s minúsculo em “pessoas surdas” refere a comunidade surda que não fala língua gestual.

Amplificador

O teatro com língua gestual chegou recentemente à vanguarda do teatro comercial através da aclamada produção da Broadway, de Spring Awakening, apresentada simultaneamente em língua gestual americana e em inglês. Actores Surdos e membros da equipa criativa produziram experiências teatrais extraordinárias tanto para o público Surdo, como ouvinte. Acompanhem os membros do elenco de Spring Awakening, enquanto exploram o processo criativo, a história, e a alegria que vem do teatro com língua gestual.

Agenda

Eventos com acessibilidade física, legendagem, Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição. 


Outra Língua
26 de Maio a 12 de Junho, Teatro Nacional Dona Maria II

Destaques: Projeto criado por mulheres de Angola, Brasil e Portugal. Uma performance-conferência em que, a partir da experiência de falantes de português de diferentes países, questionamos se a nossa língua mãe é a mesma e se, intervindo sobre ela, podemos alterar a realidade que descreve.

+ info: www.tndmii.pt e www.bol.pt

Acessibilidade: Espaço físico; Interpretação em Língua Gestual Portuguesa, audiodescrição e legendagem em todas as sessões.


9 (NEUF)
3 a 5 de Junho, CCB

Conhecida pela sua dança eloquente, a companhia Cas Public acolhe agora um performer atípico, Cai Glover, que superou uma deficiência auditiva e se tornou um bailarino profissional. A coreógrafa Hélène Blackburn deu um passo fora do vulgar e usou a sua deficiência auditiva como ponto de partida para a sua nova criação.

+ info: www.ccb.pt 

Acessibilidade: espaço físico.


Subterrâneo – Um musical obscuro
10 de Junho, Teatro Municipal São Luiz 

Colaboração entre os portugueses Má-Criação e os brasileiros dos grupos Foguetes Maravilha e Dimenti, reunindo artistas que desde 2009 se têm encontrado nos dois lados do Atlântico. O ponto de partida para este projeto foram as notícias sobre os 33 homens presos num desabamento na Mina San José, no Chile, em 2010. Este é um espetáculo que se escuta antes de se ver; não há aqui um palco iluminado por projetores potentes, mas uma sala escura onde, por vezes, surge o breve brilho de um fósforo, uma lanterna, um lampião.

+ info: www.teatrosaoluiz.pt

Acessibilidade: Espaço físico; Audiodescrição. 

Mais sugestões em www.cultura-acessivel.pt

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